sexta-feira, 15 de julho de 2011

CARTA DO DANIEL MACHADO PARA MIÚCHA TRAJANO GIRARDI

PARA OS QUE VIVERAM NESTES BONS TEMPOS.

   Outro dia, joguei as reflexões pra lá e fui pra Internet. Abri um vinho pra aproveitar bem os ótimos e-mails do Florips e suportar melhor as angustiantes notícias políticas e econômicas transmitidas na rede. Quando o pessimismo estava perto de zero fui pro blogue da Lígia Aroeira procurar seiva pra continuar vivendo. Encontrei. 
   De cara, ou melhor, no rosto do blogue, tem uma fotografia da Praça São Januário com o lindo jardim e nos fundos o armazém do Sô Canesque. Entrei, pedi ao Rupiado uma pinga, uma porção de bucho com pão e continuei navegando. Cliquei na matéria Pendões de Ubá e vi duas coisas legais: você é Presidente da AULE - Academia Ubaense de Letras e vara de foguete chama-se "Gramínea Gynerium Sagittatum" ou Cana Ubá.
  Fiquei duplamente feliz pela sua eleição para a presidência da Academia. Primeiro, pelo ótimo nome encontrado pelos acadêmicos para substituir o falecido imortal Advogado Manoel Brandão Teixeira, excelente poeta e legendário apreciador de broa de milho. Segundo, por estar em moda no Brasil mulher ser Presidente, ou Presidenta. Tomara que continue. Parabéns para você, para a AULE e para todos os ubaenses. Que você possa conduzir a Academia com a competência de sempre.
   A outra coisa que me alegrou foi, finalmente, aprender corretamente a origem de nosso nome. Confesso que achava que Cana Ubá tinha a ver com o nosso gosto pela caninha. Desculpe minha inocência, mas os culpados são Chuva de Banda, Heitor Cidadão, Paulo Espósito, Tunin Preguiça e amigos. Também sou responsável pela minha ignorância toponomástica. Certamente, professor Campolina, nosso mestre de Latim, entre um cigarro e outro, deve ter nos ensinado sobre a "Gramínea Gynerium Sagittatum". Senão ele, com certeza Sô Honorico Carneiro, professor de geografia e descendente do desbravador Capitão Mor, nos ministrou sobre a "gramínea". Naquele tempo, eu não tinha nenhum pendor para prestar atenção nas aulas. Mas, nunca é tarde para aprender.
   Li com atenção o texto do colaborador do blogue, Chiquinho de Carvalho, sobre o evento realizado na Praça São Januário em homenagem à "Sagittatum". O acontecimento foi de peso. Prefeito, vereadores, Vice Prefeito, secretários, você, representante do Governador, Lígia, a distintíssima dona Olga Carneiro, meu ex-colega de ginásio Antônio Queiroz, Desembargador José Altivo, povo em geral.
   José Altivo deve ter sentido emoção especial. Lembro bem que perto de onde Sô Dico Teixeira tirava do rio areia de construção para educar sua filharada tinha uma moita de Cana Ubá. Sô Dico, homem bondoso, cedia os pendões maduros para o fogueteiro oficial da Paróquia São Januário fazer seus artefatos para as festas religiosas. Veja que curioso, o tempo passou e dia 03 de julho um dos filhos do Sô Dico, Desembargador José Altivo, estava ajudando plantar no Jardim São Januário uma muda da famosa "gramínea". "O mundo gira e a Lusitana roda".
   Miúcha, pode haver dúvida, mas eu não tenho. Chiquinho de Carvalho informou na matéria que a planta que deu nome à Cidade Carinho é um patrimônio imaterial dos ubaenses. Como membro deste povo, discordo. Ela é um patrimônio material e eu, embora não possa provar, tive uma experiência real que me garante que ela é matéria mesmo. Acredite se quiser.
   Foi no mês de maio de 1956. Fazia frio. Acabei de jantar arroz, feijão e bife com caldinho e pedi mamãe pra ir na coroação. "Deixo, se você tiver feito o dever", respondeu mamãe enquanto retirava a mesa. Rabisquei qualquer coisa e disse "tá pronto". "Então vai, mas cuidado com os foguetes-de-vara e não avança em cima dos cartuchos. Tenha educação", recomendou mamãe. "Pode deixar", respondi. Pedi a bênção e sai. Papai estava na varanda pitando um cigarro de palha e Zé Christiano fazendo o dever de Trabalhos Manuais. Era um anel de coco que depois ele deu pra Maizé, mocinha vaidosa. Vera Lúcia devia estar flertando com o Chico.
   A menina que ia coroar era zarolha. Bem, não tenho certeza, mas me parecia. Era da família Gravina, dona da padaria São João Batista, rua Santa Cruz. Ficava no mesmo passeio da nossa casa, em direção à Igreja das Mercês. Mandei brasa. Passei correndo pelo fedorento rego do Xavier Pereira e cheguei meio ofegante na fábrica de manteiga. Parei um pouquinho pra ver os operários, com tamancos de madeira, colocarem uns latões de leite vazios numa carroça com um burro branco e continuei. Do lado de fora do açougue do Zico Ruela uma cachorrada magra esperava um pedaço de pelanca e do lado de dentro os mosquitos se fartavam. Passei emocionado no passeio da casa aonde nasci, ao lado do posto de gasolina do Chico Cibide. Só pra você se situar, é a casa aonde mora a notável datilógrafa Judith Cioffi, a Verônica. Bem, enfim, cheguei na padaria.
   Com pouco, a meninada foi chegando. Anjos, virgens e meninos atrás de cartuchos. A mãe da coroadeira, uma senhora gorda e agitada, falava sem parar organizando as meninas na rua de pé de moleque. Um carro de boi passou cantando. Lígia e Betete estavam de anjo, Jane de virgem. Marly e Marluce Haikal, representantes da Paróquia do Rosário, vestiam de anjo. Tia Tonica comprou as asas numa galeria em Juiz de Fora. O pai da menina zarolha, padeiro, passou com um casquete branco sujo de farinha de trigo. Levava um amassado tabuleiro preto de assar pão. Foi buscar cartuchos na casa da vizinha. Fiquei por ali, pra lá e pra cá, entre uma monte de lenha que ficava num corredor que dava acesso à casa, nos fundos. A padaria ainda estava aberta. Debaixo do balcão de madeira uma vitrine guardava três pães chaleira e um monte de roscas coloridas. Uma varejeira voava contra o vidro em busca de liberdade. Gesu chegou, uniformizado, com o piston debaixo do braço. Sorria para todos com o lábio superior amassado de tanto tocar o amado instrumento. De mansinho os músicos foram chegando. "Cadê o João Bananeiro?", alguém perguntou. Ele estava atrasado. O General da Banda não podia faltar, não tinha graça. Finalmente, chegou de uniforme de gala, parecendo um general boliviano. Alvoroço. A mãe da coroadeira gritou: " vamos, gente, nós estamos atrasados. O Padre Jésus não gosta. Ele é bravo. Dona Luizinha Martins já falou pra gente não atrasar. Gesu, executa!", ordenou o padeiro.
   Colei no homem que estava distribuindo fogo de bengala. A procissão seguia pela Santa Cruz em direção à São Januário. Peguei a fila da direita levantando ao máximo o bastão. Uma cachoeira de fogos dos dois lados fez um túnel luminoso na rua. A coroadeira no meio. Tia Lourdes, da janela, me viu. Com vergonha, olhei pro outro lado. Zé Enilce também soltava fogo de bengala, pensando nos cartuchos. Na rua da Ordem viramos à esqueda. Hamilton fazia serão, soldando uma grade. Quando a coroadeira passou ele levantou a máscara e deu uma olhada pra ver quem era. Voltou a trabalhar, enquanto contornamos a igreja e entramos pela porta da frente. A banda ficou do lado de fora. Os morcegos do cruzeiro dormiam dependurados enquanto as andorinhas da igreja se perguntavam o que estava acontecendo. Padre Jésus levou as meninas em cortejo até o altar. Nossa Senhora, de mãos postas, esperava pacientemente.
   Entre o bar Municipal e a igreja, Dona Bernadete organizava barraquinhas para depois da coroação. Padre Jésus estava precisando de dinheiro. Luiz Martins, primo da mamãe, era o leiloeiro. Estufava as veias do pescoço de tanto gritar. Ele colocava as prendas em ordem, deixando as mais valiosas para o fim. Bolo e frango assado na frente, leitão com farofa no final. Quando a coroadeira era rica o leilão dava mais dinheiro. Lembro uma vez que tinha uma bezerra gir para ser leiloada. Acho que foi Sô Délio Malta quem arramatou, depois de divertida disputa com Chiquito Barletta. Era muito pojudo.  
   Saí da igreja de fininho e fui para as barraquinhas dar uma olhada. Luiz Martins me viu e perguntou: "a Fia tá boa"? "Tá", respondi. O cheiro de frango assado misturava com o de mijo, vindo do Municipal. Segui em direção à casa paroquial, onde o fogueteiro soltava as "Sagittatuns" bem na hora que Nossa Senhora estava sendo coroada. Um ajudante ficava na porta lateral pra dar o sinal. Quando o fogueteiro me viu, pediu para eu ajudá-lo, entregando as varas, uma a uma, para ele soltar. Usava a brasa do cigarro para acender a pólvora. Ação e reação. A mesma lei da natureza que colocou o homem na lua levava a Vara Ubá para as estrelas. Enquanto esperávamos, o fogueteiro me falou que fez um foguete tão poderoso - pólvora chinesa - que a vara chegou à constelação de Sagitário. Achei que ele estava caçoando de mim. Mas, agora que fiquei sabendo o nome científico da vara acho que ele estava certo.
   Foi dado o sinal. A coroadeira começou coroar Nossa Senhora. Padre Jésus balançava o turíbulo jogando incenso no altar. Virgens e anjos nas escadas laterais jogavam pétalas de rosas e dálias na imagem. Dona Chiquinha, de violino no queixo, comandava o coro. A catecista Joaninha Pontes chorava e eu entregava varas para o fogueteiro. Era uma tragada e um foguete chiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii  pum, uma tragada e um foguete chiiiiiiiiiiiiii   pum, uma tragada e um foguete chiiiiiiiiiiiiiiii  pum. Foram mais de trinta. Fiquei com a mão toda suja de pólvora, mas feliz.  A meninada saia correndo pela cidade pra pegar as varas. Depois, todos voltavam na igreja para mostrar seus troféus. Naquela noite quem catou mais foi Zé Faustino, seis. 
   Mas, o melhor eram os cartuchos: Cocada preta, canudinho, pé-de-moleque, doce de leite de losango, cajuzinho, doce de coco de bolinha, cocada branca. Despedi do fogueteiro e saí correndo para a padaria. Queria pegar um lugar bom na fila dos cartuchos. Sô Hamilton tinha fechado a oficina, um cachorro Bulldog tomava conta da fábrica de manteiga, a geladeira do açougue do Zito zoava e Carminha Rocha colocava a camisola pra rezar o terço e dormir. A rua Santa Cruz iniciava o silêncio. Fui o terceiro a ganhar cartucho. Antes de mim só dois meninos que não foram na coroação e chegaram primeiro. Peguei meu presente e fui pra casa saboreando os doces. Não sei como estava a rua Santa Cruz na volta. Acho que dormindo. Guardei um cajuzinho pra mamãe. Ela falou que ele estava com cheiro de busca-pé. Acho que era da padaria.
  Lavei as mãos, escovei os dentes, potei o pijama e fui dormir. "Bênção mãe, bênção pai". Papai murmurou qualquer coisa e mamãe respondeu pronunciano bem as palavras: "Deus te abençõe, meu filho". 
   Boa noite Miúcha,
   José Daniel   
  
  

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